segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

sábio


Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, já passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa - 11 de setembro de 1933

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

árvore da vida

esta noite sonhei que era uma árvore. uma árvore do cerrado. nem imensa nem miúda. média. aparentemente frágil. firmemente presa ao solo. meus galhos vergavam com o peso de dezenas de casas de joão-de-barro. ao meu redor, uma algaravia daqueles pássaros. O joão-de-barro é tido como passarinho trabalhador e inteligente. Seu canto parece uma gargalhada e, quando ele canta, é sinal de bom tempo. Que venha o sol!


segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

gaiola de ouro

somos assim. sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. para voar, é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. porque é só no vazio que o vôo acontece. o vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. mas é isto que tememos: o não ter certezas. por isso trocamos o vôo por gaiolas. as gaiolas são o lugar onde as certezas moram .

o texto é de Rubem Alves, escritor brasileiro da atualidade.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

o trovador

era uma galeria comprida. profunda e estreita. vários sofás, várias cadeiras, pessoas conversando em pequenos grupos. puxado por uma professora, eu parava em cada grupo e entoava os versos de uma canção. passava ao seguinte grupo, e seguia cantando. em pouco tempo, congregava todos os presentes naquele espaço, como se meu canto fosse um fio que unisse toda aquela gente. no fim da galeria, uma cama. a minha cama. ali sentado, pensava que havia comprado o bilhete aéreo errado, porque estava morando em madri, tinha que ir a lisboa e contava com uma passagem que dizia rio de janeiro-madri. tonto e enjoado, fui até a pia. uma pia antiga, marca booths, inglesa. no meio do símbolo da marca, estava escrito, em verde: proibido vomitar. vomitei.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

a cara do pai

minha semelhança física com meu pai, que é grande, é pouca diante de quanto me pareço com ele no que há de mais profundo no meu ser. passei minha vida tentando negar o tanto que me parecia. meu pai se suicidou quando eu tinha 14 anos e parecer-me com ele, na minha opinião, aproximava-me perigosamente da loucura. vivi 37 anos esquivando-me da insanidade. faz um mês que o que eu acreditava ser a loucura bateu à minha porta. não houve medo. houve compaixão, doçura, liberdade, relaxamento, leveza. depois disso, me olho no espelho, vejo o que há por dentro e por fora, e me reconheço. eu sou cara do meu pai.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

mantra

eu me aceito profunda e completamente, mesmo não sendo quem eu gostaria de ser, mesmo tendo os problemas que tenho.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

mãos ao alto

estava com meu pai. ambos sentados num banco de um ônibus urbano no rio. nem muito à frente, nem muito atrás. ele estava na janela, eu, no corredor. eu olhava o movimento na calçada. sinto alguém perto de mim. uma pessoa que para, quase roçando o meu ombro, de pé no corredor. pelo volume em sua calça, adivinho um pau enorme, semi rijo. acho curiosa a cena. logo ele coloca a mão dentro da calça, acaricia o que imagino ser seu cacete e saca um revólver. me dou conta de que tenta assaltar-me. retiro o revólver de sua mão com delicadeza. ele retira de dentro da calça outra pistola. já impaciente, tomo a pistola de suas mãos. ele desce do ônibus em seguida. olho para o meu pai. investigo os revólveres. estavam sem balas. abro a janela e jogo as armas através dela. esse sonho leva três dias dando voltas na minha cabeça.